Contra a corrente
O Inferno da Luz já foi o nosso Céu (agora é, precisamente, o contrário)
Por Leonor Pinhão in A'Bola
Não tendo nascido numa família católica nunca o Céu me foi prometido. Tenho passado bem sem a ideia do Céu como garantia de uma vida eterna.
O que tive sempre por garantido, e desde criança, foi o Inferno. Melhor dizendo, o Inferno da Luz.
O Inferno da Luz não era uma metáfora, nem um dogma. Era o que era. E era verdade. Foi nisso que fui educada. E durante anos a fio testemunhei com os meus olhos as manifestações desse poder incomensurável. Não havia adversário, nacional ou estrangeiro, que não se fosse abaixo das canetas no momento de subir ao relvado.
Era uma questão psicológica. Nas bancadas, um público altamente qualificado vibrava de optimismo e de uma alegria única, quase ao modo sul-americano. Vinham até pessoas do estrangeiro para assistir ao espectáculo. E que espectáculo!
Qualquer adversário, por mais poderoso, tremia só com a perspectiva de ter de jogar na Luz. No Inferno da Luz, claro está. A expressão, de tão justa que era, internacionalizou-se e acompanhou a lenda de um Benfica mítico. O Inferno da Luz era, obviamente, o nosso Céu.
Quando eu comecei a ir ao futebol, ao domingo à tarde, havia uma pressa muito grande de chegar ao estádio. Podiam faltar duas horas para o início do jogo mas as pessoas corriam pela Segunda Circular com medo de chegar atrasadas um minuto que fosse. E tinham razão. Podiam perder o primeiro golo do Benfica.
Era quando ainda não havia lugares marcados para os sócios. Quem chegasse primeiro escolhia o lugar, privilégio anacrónico de um clube democrático. Havia quem esperasse de pé pelo momento da moeda ao ar e da escolha de campo para, depois, se dirigir imediatamente para os lugares atrás da baliza da equipa adversária. Para ver os golos do Benfica a entrar.
E, ao intervalo, era vê-los percorrer meio estádio para se postarem, outra vez, atrás das redes das vítimas. O esforço valia quase sempre a pena.
Era quando o melhor lugar do estádio não era a bancada central. Eram as cabeceiras, atrás da baliza adversária. Ali é que o espectáculo estava mais do que garantido. Golos atrás de golos.
Lembro-me de desejar muito, nesse tempo, que o Benfica sofresse um golo nos primeiros minutos de jogo. Para dar mais emoção à coisa. Para espicaçar a equipa e lançá-la num galope desenfreado e vitorioso sobre os visitantes que acabavam, invariavelmente, encostados às cordas e a rezar pelo apito final.
Isto era quando o Inferno da Luz era o nosso Céu. Agora é, precisamente, o contrário.
O Inferno da Luz é o nosso Inferno e o Céu dos nossos adversários.
Tomemos por exemplo o campeonato corrente. No sábado passado, depois do empate com o Nacional, os adeptos do Benfica abandonaram o estádio vergados ao peso da inevitabilidade que tem marcado a última década: é na nossa casa que perdemos campeonatos atrás de campeonatos.
Em 2007/08, já lá vão 11 pontos perdidos na Luz. É este o nosso Inferno.
E como explicá-lo?
O clube é o mesmo, o emblema também, o equipamento normalmente não difere muito do original (apesar de algumas modernices decretadas pelo marketing), o número de sócios não deixou de aumentar…
Há quem defenda que estamos perante um caso do foro psiquiátrico. O excesso de amor da massa associativa inibe a equipa quando actua em casa. E logo o amor se transforma em descrença e em azedume e num círculo vicioso de crueldades mútuas. Não é esta, no entanto, a minha opinião. O Benfica não precisa de um psiquiatra. Do que precisa mesmo é de marcar golos.
Eu, por exemplo, tenho muita fé no dr. Makukula.
Mas já ouvi benfiquistas do tipo novo (daqueles para quem o Inferno da Luz não é o Céu) torcer o nariz ao luso-congolês:
– Vais ver, bastou-lhe assinar pelo Benfica para nunca mais marcar um golo… – é o que dizem.
É por estas e por outras que não conseguimos ganhar jogos em casa.
Aselecção dos Camarões qualificou-se para as meias-finais da Taça de África das Nações no prolongamento do jogo com a Tunísia. O jogo chegou aos 90 minutos empatado a duas bolas e o terceiro e decisivo golo dos Camarões nasceu de um lançamento de linha lateral de Bynia.
Bynia tem feito muita falta ao Benfica. Com ele em campo o Benfica nunca perdeu. E com ele em campo cada lançamento de linha lateral é meio-penalty.
Aúltima vitória da equipa nacional portuguesa sobre a Itália aconteceu há 31 anos. Foi em 1976, por 2- -1, num jogo particular, com dois golos de Nené, provavelmente sem ter sujado os calções. Os sócios do Benfica protestavam muito com Nené porque tinha a mania de marcar golos, o que era a coisa mais natural do mundo visto que era avançado e jogava no Benfica, mas fazia questão – e isto é que era snobismo a mais – de terminar todos os jogos com o equipamento tão limpo e imaculado como tinha entrado em campo.
Nené marcava golos, limpava Bolas de Prata e não dava despesa à lavandaria. Mal habituados, os benfiquistas protestavam com o excesso de limpeza.
Ontem, em Zurique, a selecção perdeu com a Itália por 3-1 e Makukula estreou-se na condição de jogador do Benfica. Não foi lá muito feliz, mas também nenhum dos seus companheiros foi. Ricardo Quaresma terá sido a excepção de um colectivo nada impressionante. Mas os olhos dos benfiquistas estiveram postos em Makukula..
– Estás a ver? Como já é jogador do Benfica mal consegue tocar na bola…
As coisas que uma pessoa tem de ouvir.
PS - Neste fim-de-semana não há Campeonato. Há Taça. O Benfica devia apostar tudo nesta competição, embora o sorteio não tenha sido favorável. Saiu-nos o Paços de Ferreira. E, como se não bastasse, o jogo é no Estádio da Luz.
O Inferno da Luz já foi o nosso Céu (agora é, precisamente, o contrário)
Por Leonor Pinhão in A'Bola
Não tendo nascido numa família católica nunca o Céu me foi prometido. Tenho passado bem sem a ideia do Céu como garantia de uma vida eterna.
O que tive sempre por garantido, e desde criança, foi o Inferno. Melhor dizendo, o Inferno da Luz.
O Inferno da Luz não era uma metáfora, nem um dogma. Era o que era. E era verdade. Foi nisso que fui educada. E durante anos a fio testemunhei com os meus olhos as manifestações desse poder incomensurável. Não havia adversário, nacional ou estrangeiro, que não se fosse abaixo das canetas no momento de subir ao relvado.
Era uma questão psicológica. Nas bancadas, um público altamente qualificado vibrava de optimismo e de uma alegria única, quase ao modo sul-americano. Vinham até pessoas do estrangeiro para assistir ao espectáculo. E que espectáculo!
Qualquer adversário, por mais poderoso, tremia só com a perspectiva de ter de jogar na Luz. No Inferno da Luz, claro está. A expressão, de tão justa que era, internacionalizou-se e acompanhou a lenda de um Benfica mítico. O Inferno da Luz era, obviamente, o nosso Céu.
Quando eu comecei a ir ao futebol, ao domingo à tarde, havia uma pressa muito grande de chegar ao estádio. Podiam faltar duas horas para o início do jogo mas as pessoas corriam pela Segunda Circular com medo de chegar atrasadas um minuto que fosse. E tinham razão. Podiam perder o primeiro golo do Benfica.
Era quando ainda não havia lugares marcados para os sócios. Quem chegasse primeiro escolhia o lugar, privilégio anacrónico de um clube democrático. Havia quem esperasse de pé pelo momento da moeda ao ar e da escolha de campo para, depois, se dirigir imediatamente para os lugares atrás da baliza da equipa adversária. Para ver os golos do Benfica a entrar.
E, ao intervalo, era vê-los percorrer meio estádio para se postarem, outra vez, atrás das redes das vítimas. O esforço valia quase sempre a pena.
Era quando o melhor lugar do estádio não era a bancada central. Eram as cabeceiras, atrás da baliza adversária. Ali é que o espectáculo estava mais do que garantido. Golos atrás de golos.
Lembro-me de desejar muito, nesse tempo, que o Benfica sofresse um golo nos primeiros minutos de jogo. Para dar mais emoção à coisa. Para espicaçar a equipa e lançá-la num galope desenfreado e vitorioso sobre os visitantes que acabavam, invariavelmente, encostados às cordas e a rezar pelo apito final.
Isto era quando o Inferno da Luz era o nosso Céu. Agora é, precisamente, o contrário.
O Inferno da Luz é o nosso Inferno e o Céu dos nossos adversários.
Tomemos por exemplo o campeonato corrente. No sábado passado, depois do empate com o Nacional, os adeptos do Benfica abandonaram o estádio vergados ao peso da inevitabilidade que tem marcado a última década: é na nossa casa que perdemos campeonatos atrás de campeonatos.
Em 2007/08, já lá vão 11 pontos perdidos na Luz. É este o nosso Inferno.
E como explicá-lo?
O clube é o mesmo, o emblema também, o equipamento normalmente não difere muito do original (apesar de algumas modernices decretadas pelo marketing), o número de sócios não deixou de aumentar…
Há quem defenda que estamos perante um caso do foro psiquiátrico. O excesso de amor da massa associativa inibe a equipa quando actua em casa. E logo o amor se transforma em descrença e em azedume e num círculo vicioso de crueldades mútuas. Não é esta, no entanto, a minha opinião. O Benfica não precisa de um psiquiatra. Do que precisa mesmo é de marcar golos.
Eu, por exemplo, tenho muita fé no dr. Makukula.
Mas já ouvi benfiquistas do tipo novo (daqueles para quem o Inferno da Luz não é o Céu) torcer o nariz ao luso-congolês:
– Vais ver, bastou-lhe assinar pelo Benfica para nunca mais marcar um golo… – é o que dizem.
É por estas e por outras que não conseguimos ganhar jogos em casa.
Aselecção dos Camarões qualificou-se para as meias-finais da Taça de África das Nações no prolongamento do jogo com a Tunísia. O jogo chegou aos 90 minutos empatado a duas bolas e o terceiro e decisivo golo dos Camarões nasceu de um lançamento de linha lateral de Bynia.
Bynia tem feito muita falta ao Benfica. Com ele em campo o Benfica nunca perdeu. E com ele em campo cada lançamento de linha lateral é meio-penalty.
Aúltima vitória da equipa nacional portuguesa sobre a Itália aconteceu há 31 anos. Foi em 1976, por 2- -1, num jogo particular, com dois golos de Nené, provavelmente sem ter sujado os calções. Os sócios do Benfica protestavam muito com Nené porque tinha a mania de marcar golos, o que era a coisa mais natural do mundo visto que era avançado e jogava no Benfica, mas fazia questão – e isto é que era snobismo a mais – de terminar todos os jogos com o equipamento tão limpo e imaculado como tinha entrado em campo.
Nené marcava golos, limpava Bolas de Prata e não dava despesa à lavandaria. Mal habituados, os benfiquistas protestavam com o excesso de limpeza.
Ontem, em Zurique, a selecção perdeu com a Itália por 3-1 e Makukula estreou-se na condição de jogador do Benfica. Não foi lá muito feliz, mas também nenhum dos seus companheiros foi. Ricardo Quaresma terá sido a excepção de um colectivo nada impressionante. Mas os olhos dos benfiquistas estiveram postos em Makukula..
– Estás a ver? Como já é jogador do Benfica mal consegue tocar na bola…
As coisas que uma pessoa tem de ouvir.
PS - Neste fim-de-semana não há Campeonato. Há Taça. O Benfica devia apostar tudo nesta competição, embora o sorteio não tenha sido favorável. Saiu-nos o Paços de Ferreira. E, como se não bastasse, o jogo é no Estádio da Luz.
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