Por
Leonor Pinhão (in Abola)
Um derby é um derby. É especial. É uma civilização. Tem um caderno de encargos, de exigências básicas. Exige, em primeiro lugar, uma grande cidade, ou seja, uma onda cosmopolita sem lugar para saloiadas. Um cenário em grande, não em pequeno. Um diálogo franco entre as partes em oposição. A ferocidade nasce da luz que emana de uma razão por todos conhecida.
Um derby é como a Revolução Francesa. Um antagonismo de estado, a luta de classes, o passado e o futuro.
No presente caso do derby do próximo sábado, estamos em presença de duas bandeiras. A vermelha com o emblema dos órfãos e dos pés-descalços e a verde com o emblema dos viscondes. Ao longo de um século de história deram-se extraordinárias misturas nestes interesses, visto que a cidade é a mesma.
Já o grande Victor Hugo no seu romance épico 93, precisamente sobre a Revolução Francesa, punha o mesmo queixume na boca de um dos seus personagens, lutador pela República: « Meu caro, as queixas são as mesmas do dois lados. Nós estamos cheios de nobres; eles estão cheios de burgueses.»
Um Sporting-Benfica, ou vice--versa, mexe com a cidade e mexe com o País, por força do abençoado centralismo que satisfaz amplamente os dois campos adversários. E mexe com as famílias, com os amigos, com os colegas, com os barbeiros e com os taxistas. No fundo, é uma festa, um arrazoado sem fim.
Já dura há mais de cem anos, o que tem o seu mérito.
Nascem e morrem e nascem os ferrenhos vermelhos e verdes e voltam a morrer e as nascer e a conversa continua igual ao que sempre foi de geração em geração. Contudo, no derby do próximo sábado há a registar algumas variantes no tom com que ambas as partes defendem a sua respectiva bandeira.
Ouçamo-los então. Estão na fila para comprar bilhetes na Agência dos Restauradores, antecâmara da Baixa lisboeta. São irmãos. Um é do Benfica, o outro é do Sporting. Conversam para passar o tempo.
— Isto é que vai ser uma semana levada dos diabos! - diz o sportinguista.
— Dos Diabos Vermelhos?
— Não sejas parvo. Jogamos sábado com vocês, a meio da semana com o Bayern de Munique e no fim-de-semana seguinte com o Porto.
— Desejo-vos muita sorte para o fim-de-semana seguinte.
—Temos no espaço de sete dias jogos da maior importância em duas frentes, a nacional e a internacional. Não sei se o Paulo Bento tem unhas para estas guitarras.
— Olha, o que vocês podiam fazer era contratar esta semana o José Peseiro que deu tão boa conta do recado em 2005, naquela semana em que vocês jogaram connosco na Luz e com o Não-Sei-Quê de Moscovo na final da Taça UEFA, em Alvalade. Ou seja, nas duas frentes.
— O José Peseiro acaba de assinar contrato com a selecção da Arábia Saudita!
— Olha que pena! - respondeu o benfiquista.
— Já leste o relatório José Gonçalves?
— Quem é o José Gonçalves?
— Foi o observador da Liga do FC Porto-Benfica. Deu nota negativa ao teu consócio Pedro Proença por não ter assinalado a grande penalidade cometida pelo Reyes sobre o Lucho.
— Ah, então deve ter sido por isso que o árbitro se confessou «frustrado» no fim do jogo. Eu logo vi… E sobre o penalty que o meu consócio assinalou quando o Lisandro se atirou para o chão, o que é que diz o senhor Gonçalves?
— Diz isto: «Do local onde nos encontramos e uma vez o lance ter ocorrido…»
—«Uma vez»? Muitas vezes nos últimos 25 anos! Até o Jardel deu uma entrevista recentemente e contou como era sempre penalty contra o Benfica quando os nossos defesas lhe sopravam nas costas.
— Cala-te e ouve: «… e uma vez o lance ter ocorrido no vértice mais distante da grande área não nos foi possível vislumbrar…»
— Ah pois, «não vislumbrou»…
— «… não nos foi possível vislumbrar com clareza o desenlace da jogada.»
— Ah, ganda Gonçalves! - gritou o benfiquista.
— E continua: «… aliado ao facto de não terem existido protestos de jogadores da equipa penalizada que aceitaram pacificamente a decisão do árbitro.»
—Tem razão. Os jogadores do Benfica deviam ter corrido todos atrás do nosso consócio Pedro Proença como daquela vez que os jogadores do Porto andaram a correr atrás do José Pratas, em Coimbra, lembras-te?
— Se me lembro… José Pratas, outro grande benfiquista, como tu muito bem sabes, querido mano - fez questão de salientar o irmão sportinguista.
— E o que me dizes à nomeação de mais um árbitro benfiquista para sábado?
— O Xistra? O Baptista? Os manos Costa?
— Não, o Olegário Benquerença, essa grande papoila saltitante, que não viu a bola disparada pelo Petit entrar na baliza do Vítor Baía.
— Não «vislumbrou» queres tu dizer…
O irmão benfiquista suspirou fundo. E desabafou:
— Isto é uma grande injustiça, não concordo nada com as nomeações do Vítor Pereira, apesar de sermos do mesmo clube.
Aqui o irmão sportinguista quase se engasgou tentando disfarçar o riso. Mas logo se recompôs e mudou de assunto:
— Qual era o árbitro que nomeavas para sábado?
— De caras, o Jacinto Paixão.
— Ah, nisso estamos de acordo. Há que dar o lugar merecido às vítimas da cabala patrocinada pelo teu clube.
— É verdade. É que o Jacinto Paixão nunca «vislumbrou» nem fruta, nem café com leite, nem galões claros nem escuros, nada, nunca «vislumbrou» nada. Até porque é outro grande benfiquista, é mais um dos nossos, miseravelmente sacrificado!
— Só não percebo porque é que o Jacinto Paixão continua arredado da arbitragem…
— De facto, há coisas incríveis no futebol português.
— Bonito, bonito, era o Vítor Pereira ter nomeado o Jacinto Paixão para sábado.
— Bonito e justo.
— Justo e bonito.
E, por fim, lá compraram os bilhetes para o jogo. Benfiquistas e sportinguistas, grandes palermas.
Mai nada.